Conforme Beegle, a concepção de Inspiração que o povo de Israel tinha antes do exílio da Babilônia, era uma concepção dinâmica, i.e., “a pessoa inspirada tem a ajuda extraordinária do Espírito Santo sem violar a sua individualidade e personalidade”. A inspiração não era uma ação dominadora do profeta, onde estes perdiam a consciência e não faziam mais uso da sua racionalidade. Senão que, enquanto eles ouviam a palavra de Deus, também faziam uso dos seus “poderes racionais”. Por este motivo, se pode dizer que a palavra de Deus é “divino-humana”. Pois a verdade na Escritura é uma verdade que veio de Deus, “contudo a expressão dessa verdade sempre envolveu as características do profeta e do seu tempo” [1].
Desta forma, se pode concordar com Henry, ao dizer que,
Os profetas do AT, tanto no falar quanto no escrever, destacam-se pela sua certeza inabalável de que eram porta-vozes do Deus vivo. Acreditavam que as verdades que pronunciavam a respeito do Altíssimo, Suas obras e vontade, e os mandamentos e as exortações que proferiam em Seu nome, tinham origem e autoridade Nele [2].
O Dr. Becker dá em exemplo de como dois dos profetas, em épocas e situações diferentes, são chamados para serem guardadores da palavra de Deus, estes são Moisés e Jeremias. Em muitos dos aspectos se assemelham e resumidamente, pode-se dizer que: ambos relutaram ao serem chamados, estavam conscientes do que transmitiam era a palavra de Deus e receberam a ordem direta de Deus para escrever todas as palavras que anunciavam [3].
Aproximadamente novecentos anos separam Moisés de Jeremias [4]mas, em suas características, estes estão tão próximos, que às vezes fica difícil crer que exista esse lapso de tempo.
Em primeiro lugar, quando Deus chamou Moisés para liderar ao seu povo na saída do Egito (Êx 3.10), este, além de não querer se arriscar nesta difícil tarefa, inventou uma desculpa dizendo: Ah! Senhor! Eu nunca fui eloqüente, nem outrora, nem depois que falaste a teu servo; pois sou pesado de boca e pesado de língua (Êx 3.10). Atitude semelhante teve o profeta Jeremias, quando disse ao Senhor: Ah! SENHOR Deus! Eis que não sei falar, porque não passo de uma criança (Jr 1.6). No caso de Moisés, Deus lhe proporcionou um ajudador, i.e., alguém que falaria em seu lugar: Não é Arão, o levita, teu irmão? Eu sei que ele fala fluentemente… Ele falará por ti ao povo; ele te será por boca, e tu lhe serás por Deus. (Êx 4.14,16).
Aqui temos a doutrina da Inspiração Verbal estabelecida em sua forma mais simples e concreta. O que queremos dizer com esta doutrina simplesmente é que Deus põe palavras na boca dos seus santos profetas, que Deus lhes conta o que eles deveriam dizer, que Deus usa estes homens como a sua boca pela qual Ele fala com as pessoas. Este normalmente é o modo que a Bíblia fala da Inspiração [5].
E neste momento, quando Deus ainda repassa todas as indicações a Moisés do que faria na presença do Faraó, como também de todos os Filhos de Israel para crerem que ele era enviado de Deus, disse-lhe o Senhor a expressão que se tornará sinal de certidão divina daquelas palavras, isto é, Assim diz o Senhor (Êx 4.22). Esta expressão, segundo Becker, “quase se tornaram uma fórmula profética estabelecida, usada aproximadamente 400 vezes no Antigo Testamento” [6]. Para Henry, esta expressão “é tão característica dos profetas que não deixa dúvida de que eles se consideravam agentes escolhidos da auto-comunicação divina” [7]. E então, menciona a obra de Emil Brunner – Revelation and Reason – destacando que as
“palavras de Deus proclamadas pelos profetas, as quais receberam diretamente de Deus, e que foram convocados a repetir da mesma maneira que as receberam… talvez achemos a analogia mais próxima do significado da teoria da inspiração verbal” [8].
Já no caso de Jeremias, não muito diferente do que ocorreu com Moisés, o que lhe deu ânimo, como expressa Becker, foi que “Deus lhe deu uma promessa que o sustentou durante todos os dias difíceis do seu ministério” [9]. Sendo estas as palavras desta promessa: Eis que ponho na tua boca as minhas palavras (Jr 1.9). E, assim como a expressão Assim diz o Senhor, Jeremias também dispõe de uma frase que reforça a inspiração bíblica, como se observa nas palavras de Becker:
Se dirigindo ao rei, Jeremias começa com uma fórmula introdutória: “Ouvi a palavra do SENHOR”, uma fórmula que é mais freqüentemente usada pelos Profetas, mas, principalmente por Jeremias (Jr 2.4; 7.2; 9.20; 17.20; 19.3; 21.11; 22.2,19; 29.20; 31.10; etc.). Esta fórmula insinua a doutrina de Inspiração Verbal assim tanto quanto a mais conhecida: “Assim diz o Senhor” [10].
Em um segundo momento, Moisés e Jeremias recebem a incumbência de transmitir as palavras de Deus e, Dele serem porta-voz. Palavras essas que deveriam ser transmitidas com todo o seu rigor. Da parte dos profetas, estes estavam cientes de que tudo o que tinham a anunciar era palavra de Deus. No entanto, o povo nem sempre aceitou essa palavra como palavra Divina.
Moisés, todas as vezes que se apresentou perante o Faraó para pedir a libertação do Povo de Israel, iniciou seu discurso, através da boca de seu irmão Arão, dizendo: Assim diz o SENHOR (Êx 4.22; 5.1; 7.17; 8.1; 8.20; 9.1; 9.13; 10.3; 11.4). Comentando a recusa do Faraó e dos egípcios de não ouvirem estas Palavras e permitirem que os Israelitas saíssem do Egito, Becker nos diz que eles não estavam recusando a fazer o que Moisés dizia, mas estavam desobedecendo diretamente a Deus [11].
Essa mesma realidade foi vivenciada pelos Filhos de Israel ao pé do Monte Sinai. Ali Deus entregou uma mensagem a Moisés, o qual deveria entregá-la ao povo como sendo palavra do Senhor (Êx 19.3,6-9). À diferença do Faraó, o povo se enche de temor ao ouvir Moisés, que tudo aquilo que ele estava expondo aos anciões era palavra do Senhor (Êx 19.7). O temor vivido pelos Israelitas ao receberem as Tábuas dos Dez Mandamentos, fica evidente nas palavras ditas a Moisés: Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não fale Deus conosco, para que não morramos (Êx 20.19). Muito mais foram os momentos onde Deus falou a Moisés e este falou ao povo. A estas palavras de Moisés, o povo considerava como palavras de Deus.
Assim como o Faraó não creu ao observar todos aqueles sinais e advertências, que permitiam a entender de que todas as palavras que Moisés falava era palavra de Deus, assim também o povo incrédulo não crerá nas palavras de Jeremias, tornando, desta forma, seu ministério cheio de dificuldades.
Jeremias tendo a promessa de que aquelas palavras que anunciava eram Palavras de Deus (Jr 1.9), agora ele também recebe um comando para anunciar estas Palavras (Jr 7.27,28; 11.6; 19.2; 25.30; 26.2). Conforme Becker, por causa desta promessa e deste comando, agora Jeremias pode de consciência clara dizer: O SENHOR me enviou a profetizar contra esta casa e contra esta cidade todas as palavras que ouvistes (Jr 26.12). E quando recebeu ameaça de morte, soube dizer: Sabei, porém, com certeza que, se me matardes a mim, trareis sangue inocente sobre vós, sobre esta cidade e sobre os seus moradores; porque, na verdade, o SENHOR me enviou a vós outros, para me ouvirdes dizer-vos estas palavras.(Jr 26.15) [12].
Desta maneira, fez Jeremias identificam as suas palavras com as palavras de Deus, que ele não só diz que ele fala as palavras de Deus, mas também que Deus falou as Suas próprias palavras por ele (Jr 37.2). E quando as pessoas não escutavam as suas palavras, Jeremias os caracterizou como uma nação que não obedece à voz do Senhor, seu Deus (Jr 7.28) [13].
Em um terceiro momento, estes dois profetas, separados pelo tempo, mas unidos na semelhança, recebem o comando de Deus para escreverem as palavras anunciadas.
Seria uma prova válida para negar a Inspiração Verbal dizer que Moisés somente falou a Palavra de Deus e não a escreveu? Esta é uma das dúvidas lançadas pelos oponentes da Inspiração Bíblica, no entanto, estão totalmente equivocados. Vários são os momentos onde se pode ver Moisés escrevendo (Êx 17.14; 24.4; 34.27; Nm 33.2; Dt 31.24), o que segundo ele, deveria ser transmitido às outras gerações, principalmente pelo dirigente do povo (Dt 17.18,19).
Após o recebimento das Tábuas dos Mandamentos, Moisés escreveu todas as palavras do SENHOR (Êx 24.4), lendo o que tinha escrito ao povo, este respondeu: Tudo o que falou o SENHOR faremos e obedeceremos (Êx 24.7). Para compreender melhor este ato escriturístico de Moisés, informa Becker,
Esta não foi a única ocasião na qual Moisés foi comandado a escrever as palavras de Deus, nem foi esta a primeira vez. Algumas semanas antes, quando os Amalequitas tinham sido derrotados, Deus lhe comandou que escrevesse o relato da batalha em um livro, de forma que isto não poderia ser esquecido (Êx 17.14). Depois, durante o segundo período de 40 dias que Moisés passou com Deus no Monte Sinai onde Deus revelou a Sua Palavra a ele, Deus falou para Moisés, “Escreve estas palavras” (Êx 34.27): No livro de Números nos é relatado que Moisés escreveu o relato das viagens de Israel ao mandato de Deus (Nm 33.2), e no fim do livro de Deuteronômio lemos que Moisés escreveu a Lei (Dt 31.9), e que quando ele tinha terminado de “escrever, [integralmente], as palavras desta lei num livro” (Dt 31.24), ele deu o livro aos Levitas e lhes disse que pusessem este dentro da arca. Assim o livro escrito de Moisés foi colocado lado a lado com as duas tábuas de pedra que tinha sido escrita pelo próprio Deus, demonstrando assim que as palavras que tinham sido escritas por Moisés estavam recebendo as mesmas considerações que as palavras que tinham sido escritas por Deus [14].
De igual modo, Jeremias também recebeu a crítica de não favorecer a Inspiração Bíblica. No entanto, ele mesmo se considerou a “boca de Deus”, como expressa Becker. E este continua,
Afinal de contas, esta é a idéia básica que está por debaixo da doutrina da Inspiração Verbal. O momento que uma pessoa admite que o Profeta falou as palavras de Deus, ele não deve ter nenhuma dificuldade em concordar que o profeta também escreveu as palavras de Deus. A gravação destas profecias em forma escrita é um complemento perfeitamente normal e natural ao anúncio das profecias [15].
Moisés teve um ajudador no falar, enquanto que Jeremias, no escrever. E esta é mais uma prova, a favor da inspiração das palavras de Jeremias. Pois, no 23º ano de seu ministério, Deus lhe comandou a escrever todas as palavras que ele já tinha anunciado desde os dias de Josias (Jr 36.2) e para isso, ele chamou seu secretário Baruque. Escreveu Baruque no rolo, segundo o que ditou Jeremias, todas as palavras que a este o SENHOR havia revelado (Jr 36.4). Também temos o relato que o próprio Jeremias, após os israelitas serem levados em cativeiro à Babilônia, lhes escreveu uma carta (Jr 29.1), a qual principia com a frase: Assim diz o SENHOR (Jr 29.4).
Portanto, conclui Becker:
Desta massa de evidência fica claro que a Bíblia ensina que as palavras de Jeremias, se faladas ou escritas, são as palavras de Deus. E isto, em condições simples, é o que nós queremos dizer pela Inspiração Verbal da Bíblia [16].
[1] BEEGLE, Dewey M. Scripture, Tradition and Infallibility. 1973, p. 125.
[2] HENRY, op. cit. p. 187.
[3] BECKER, op. cit. p. 43ss.
[4]DIETRICH, S[usana] de. O Desígnio de Deus. Em nota de rodapé diz: “Em 1600, os hicsos são expulsos e os israelitas maltratados. Dá-se, então, o Êxodo” (pág. 42) e em “627 – Início do ministério de Jeremias” (pág. 85). Portanto, o início do ministério de Jeremias se dá 973 depois do Êxodo.
[5]BECKER, op. cit. p. 43.
[6] Idem, p. 44.
[7] HENRY, op. cit. p. 187.
[8]Ibidem.
[9] BECKER, op. cit. p. 50.
[10]Idem, p. 51.
[11] Idem, p. 46.
[12] BECKER, op. cit. p. 52.
[13]Idem, p. 53.
[14] BECKER, op. cit. p. 48.
[15] Idem, p. 54.
[16] Ibidem.