Para podermos compreender a história por trás de Marcos 10.13-16, temos que ter uma clareza maior sobre o que é o Evangelho de Marcos e para quem o evangelista está escrevendo. É interessante também olharmos para cada personagem dentro do Evangelho e quais as suas ações e qual a sua relação com o tema proposto.
O Evangelho de Marcos é considerado, por muitos autores, como um Evangelho “dramático”, onde, o que se nos apresenta é o desenrolar de uma história como em um drama.
Morna D. Hooker [1]resume essa idéia de drama da seguinte maneira:
Ao escutar as palavras brilhantes de Marcos, era fácil para os ouvintes imaginarem-se presentes na multidão que ouvia Jesus na Galiléia e seguindo-o com os discípulos a caminho de Jerusalém; sentiam o poder do chamado de Jesus ao discipulado e davam-lhe sua resposta. Podia não haver atores em um palco a sua frente, mas eles presenciavam, de fato, a leitura de uma peça, ouviam a leitura de um drama. Além disso, era um drama que exigia a participação da platéia (1997, p. 15).
Hooker nos mostra duas situações diferentes que nos dão a idéia para podermos entender a “chave dramática” no Evangelho de Marcos: A leitura do texto ao público ou “platéia” e a interação, participação da platéia com o texto que ouviam.
Segundo Hooker, os textos bíblicos “foram escritos para serem ouvidos, não lidos” [2]. Temos a errada concepção de que esses livros eram de domínio público, quando na verdade eram raros os casos de alguém que tivesse algum manuscrito dessa categoria em casa. Naquela época, o ouvir era mais importante e a única maneira de se ter conhecimento da revelação do Evangelho.
Outro detalhe que podemos acrescentar ao Evangelho de Marcos é o seu caráter enigmático. Para J. Delorme [3]o “Jesus de Marcos é enigmático”[4]. Um Jesus que nos surpreende e que muitas vezes falava por parábolas e que nem sempre revelava de maneira imediata aquilo que desejava.
Delorme nos mostra como é esse Jesus enigmático:
Ele tem às vezes atitudes que nos espantam. Diante de não poucos atos e palavras de Jesus, vem-nos a pergunta: que é que ele quer dizer? Que é que ele nos quer fazer pensar?
Ele nos repete a saciedade que os discípulos não compreenderam nada. Mas nunca diz o que eles deviam ter compreendido! (1985, p. 8).
Dessa maneira, podemos dizer que temos em Marcos um drama enigmático, que vai envolvendo a platéia no decorrer de suas cenas e dos enigmas não revelados dentro delas. Dessa forma, o ouvinte de Marcos se vê cercado pelo relato do texto, de forma que tem que ouvir até o final do drama para poder descobrir o desfecho e a revelação de seu segredo.
Outro detalhe que temos que ter em mente é: quem eram os ouvintes do Evangelho de Marcos? Para quem ele foi escrito? O próprio evangelista não indica em seu Evangelho seu propósito e nem um público alvo, o que nos faz depender de outras fontes, como nos mostra Carson:[5]
Marcos é um narrador que pouco ressalta sua própria pessoa. Ele conta a sua história com um mínimo de comentários editoriais e nada diz acerca de seu propósito ou do público que quer alcançar (1997, p. 112).
Provavelmente o Evangelho de Marcos tenha sido escrito, conforme podemos constatar nas fontes extrabíblicas, para um público de cristãos gentílicos, provavelmente em Roma. Carson vai dizer que “se Marcos escreveu em Roma, provavelmente escreveu para romanos” (1997, p. 112).[6]
É dentro desse contexto que lemos o relato de Marcos 10.13-16, não como um texto isolado de toda a obra, mas como “uma cena, dentro de todo o drama”. Um drama com vários personagens; Jesus, as crianças, os discípulos e as pessoas que trazem as criança.
PRINCÍPIO DO EVANGELHO DE JESUS CRISTO
“Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (ALMEIDA, 1999). Dessa maneira o evangelista inicia seu Evangelho. Dentro de uma leitura de Marcos como um drama, devemos ter em mente o que o autor desse drama esteja querendo sugerir com esse prólogo. Porque que Marcos inicia seu Evangelho com “fim” da história[7]?
O Evangelho não era algo novo para os ouvintes de Marcos. Provavelmente eles já o tinham ouvido de Pedro ou de outros discípulos. Marcos ao começar seu Evangelho, com aquilo que poderíamos dizer ser o “final” da história, estava na verdade chamando a atenção de seus ouvintes para algo que eles já conheciam. Conforme Leon Morris[8]:
Marcos começa seu evangelho com uma referência a Jesus Cristo como “Filho de Deus” (1.1), e quando chega ao ponto culminante do seu escrito, ele nos relata que o centurião ao pé da cruz disse, no momento da morte de Jesus: “Verdadeiramente, este homem era o filho de Deus” (15.39). “O Filho de Deus” é, portanto, o primeiro e o último título aplicado a Jesus neste evangelho (2003, p. 119).
Certamente o destaque não está na forma como se começa, mas sim naquilo que essas palavras introdutórias querem de fato dizer. Mesmo que o “Evangelho” o qual Marcos estava anunciando já fosse conhecido para aqueles ouvintes, uma “Boa Nova” sempre será uma “Boa nova”. Dessa maneira ao introduzir “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo” (v.1). Marcos de certa forma está querendo dizer: Essa “Boa Nova” que vocês certamente já ouviram e conhecem a ela eu trago “algo novo” – a presença do reino entre nós.
Para Morris, Marcos vê nesse título de “Jesus como Filho de Deus” um relacionamento íntimo entre Jesus e o Pai. Assim sendo a “Boa Nova”, contida em Marcos, pode ser resumida como a ação de Deus em favor da humanidade por intermédio de Jesus Cristo. Conforme Morris:
Marcos deixará claro que a “boa notícia” é que Deus agiu de modo decisivo em favor da nossa salvação, e que é por causa da graça de Deus e não de méritos humanos que ingressamos a vida (2003.p. 115).
Para Marcos, o “Evangelho de Jesus Cristo, filho de Deus” na verdade é o cumprimento Messiânico da vinda do salvador e a restauração do reino de Deus. Para Marcos, Jesus é a presença do reino entre nós. Em Marcos 1.15, ele completa “O tempo está cumprido, e o reino está próximo…”
Dentro da perspectiva de Marcos como um drama, podemos observar agora a importância do prólogo e o que ele revela para os ouvintes de Marcos. Certamente que eles já haviam ouvido histórias sobre Jesus, mas há algo surpreendente e misterioso que é revelado no prólogo. “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” revela aos ouvintes desse drama quem é Jesus! Jesus é Filho de Deus. Essa revelação logo no início do drama vai ser importante para os ouvintes no restante da “peça”. Ela vai ser importante para que os ouvintes consigam compreender o relacionamento do “Filho de Deus” com a “vinda do reino”.
[1] HOOKER, Morna D. Inícios: Chaves que abrem os Evangelhos. São Paulo: Edições Loyola, 1997..
[2] HOOKER, op. cit., p. 14
[3] DELORME, J. Leitura do Evangelho segundo Marcos. São Paulo: Edições Paulinas, 1985
[4] DELORME, op. cit, p.8
[5] CARSON, MOO, MORRIS. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
[6] Isso é dito ou está implícito nas tradições primitivas acerca do evangelho, segundo os quais Marcos registrou a pregação de Pedro para aqueles que haviam ouvido o grande apóstolo em Roma. […] o muito latinismo do evangelho são compatíveis com leitores romanos, ou até decisivos para uma conclusão neste sentido. Parece claro que Marcos escreve a gentios, pela tradução que faz de expressões aramaicas, pela explicação que dá a costumes judaicos […] (Carson, 1997).
[7] Conf. Hooker, p. 17
[8] MORRIS, Leon. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 2003.