Os Batismo e Santa Ceia: batismo e Santa Ceia
Os Batismo e Santa Ceia têm sua razão de ser na ordem do nosso Senhor. A partir do batismo de Jesus e sua última Ceia, a Igreja cristã interpretou esse mandato instituindo os sacramentos: Batismo e Santa Ceia. Portanto, são ordem e obra dEle, somente dEle. O que constitui um sacramento é a Palavra de Deus que, unida ao sinal, ou seja, à água, no batismo, ou ao pão e ao vinho, na Santa Ceia, torna o sacramento o que ele é: ato externo, extra nos, que nos concede as promessas de Deus em Cristo, todos os dons do mediador entre nós e Deus, ou seja, graça, fé/justificação, perdão dos pecados, Espírito Santo/santificação, vida eterna, vida “grudada” em Cristo, fortalecimento na fé e no amor; é um ato externo, a presença de Deus, a materialidade/encarnação de Cristo, mas sempre na comunhão dos santos/corpo de Cristo, ou seja, na comunidade, e não individualmente (1 Co 12.27). Para se ter uma visão ampla do primeiro sacramento, o batismo, é necessária uma incursão pela história e pela teologia do batismo anterior à Reforma.
O NT e a comunidade primitiva realizavam esta prática baseados no batismo de Jesus. Não se tem certeza se todos os discípulos, por exemplo, foram batizados, embora tudo indique que sim. Portanto, a prática do batismo de Jesus tornou-se o modelo e a ordem (Mt 28 é tido como um adendo da comunidade primitiva), a partir dos quais se constituiria a teologia do batismo, ampliando-se ritualmente e mais tarde desembocando no rito usando a descrição de White da iniciação cristã. Nesta época, não se conhecia o batismo de crianças. Há somente indícios de que provavelmente as crianças dos lares cristãos tenham sido batizadas. Assim, há mais probabilidade, mesmo não se tendo certeza, de que a prática até o século II era o batismo de adultos. É importante ressaltar que a prática da iniciação cristã consistia na preparação ou catecumenato; na lavagem, morte e ressurreição com Cristo; na unção e na imposição de mãos como emblema do Espírito Santo, como presença, como doação do Espírito Santo ao batizando. Logo após o batismo, todos os batizados, pertencentes agora à comunhão dos santos, ao corpo de Cristo, participavam da Santa Ceia.
O sacramento da Santa Ceia faz parte da iniciação cristã como o “já” das promessas do batismo, pois neste são prometidos todos os dons do Reino, os quais já usufruímos na Santa Ceia, na materialidade do repartir o corpo e sangue de nosso Senhor (1 Co 10.16-17), mesmo sob o “ainda” das tribulações. O que deve ser enfatizado aqui é que a confirmação, ou seja, a imposição de mãos pelo bispo, era parte integrante da iniciação cristã. Devido à questão do entendimento de que essa parte do rito deveria ser realizada “somente” pelo bispo e de que, a partir do crescimento do cristianismo, o bispo não podia estar em todos os lugares, iniciou-se uma separação, uma postergação desta parte do rito, mesmo que já houvesse outras práticas que permitiam ao sacerdote a sua realização. O Ocidente não abriu mão deste ato como tarefa, como “poder” conferido apenas ao bispo, diferentemente do Oriente. Portanto, a confirmação separada da iniciação cristã foi se tornando um rito em si mesmo, tendo de ser elaborada uma teologia para explicá-la, acabando por vir a significar um reforçar, um completar o batismo. Fora de seu contexto, ela ficou sem estrutura. Esta separação desenvolveu uma série de mal-entendidos, sendo que o sacramento do batismo foi como que amputado, pois ficou incompleto, necessitando-se sempre ainda da crisma. Portanto, a distância da confirmação frente ao batismo, o que antes era parte de uma unidade.
Quanto à questão do batismo de infantes, sua prática inicia-se provavelmente a partir do século II. As razões para esta mudança são devidas a vários fatores: até o século II, os cristãos acreditavam na inocência das crianças, ou seja, no estado apecaminoso destas (este é, por exemplo, o argumento de Tertuliano contra o batismo de crianças); a relativização da parúsia, ou seja, o Reino não chegava e as crianças iam perdendo, então, seu estado inocente. Isso gerava a necessidade do batismo. Outro fator consiste em dar uma maior atenção às crianças por parte da comunidade primitiva, o que no NT não era central, pois neste, apesar dos textos que falam dos encontros de Jesus com as crianças, a maior atenção se dá aos adultos; e, por último, um reavivamento da teologia paulina do pecado, onde é ressaltado o aspecto de que toda a humanidade foi tocada por ele, ou seja, todos estão sob a força do pecado, não existindo inocência.
A teologia de Agostinho levou isso ao extremo, identificando o pecado original ao ato sexual, o qual passaria o pecado adiante. O medo de as crianças morrerem sem terem sido batizadas, unido à alta mortalidade infantil, colaborou para esta mudança.
É necessário frisar, no entanto, que este argumento do medo não é o único e nem o mais importante para a mudança da prática do batismo, mesmo porque não se tem certeza de que, nos tempos dos apóstolos, não se o praticava!
Lutero, por exemplo, acreditava que sim. A partir do séc. II, entretanto, pode-se comprovar o batismo de crianças através dos relatos, o que indica que, provavelmente, esta prática já tenha sido realizada anteriormente. De qualquer forma, no século V, ele já era prática comum na Igreja Cristã. A comunidade entendia que as crianças nascidas de lares cristãos pertenciam a Deus e à comunidade, não havendo, assim, problema algum quanto ao batismo de infantes. O que é importante resssaltar neste ponto é o fato de que a passagem ao batismo de crianças e ao batismo de recém-nascidos não significou a negação da Santa Ceia a estes, já que, até o século XII, a Igreja cristã manteve essa compreensão saudável de que as crianças batizadas, como parte do corpo de Cristo que eram, tinham naturalmente lugar à mesa da comunhão. Em alguns lugares do Ocidente, continuou-se praticando a Santa Ceia com as crianças até o Concílio de Trento isso significa até o século XVI! O medo medieval de que os leigos, não só as crianças, pudessem derramar o cálice com o sangue de Cristo fez com que este fosse negado às pessoas. Em relação às crianças, o argumento estava no entendimento; por isso, era necessário esperar até a idade da razão, para que estas compreendessem o que estava acontecendo. A postergação da imposição de mãos pelo bispo, que mais tarde se tornou a crisma, encontrou neste argumento um terreno fértil onde pudesse se agarrar. Seria na Reforma do século XVI que toda a teologia dos Batismo e Santa Ceia iria entrar em crise, gerando aprofundamento e reavivamento e provocando mudanças que iriam marcar toda a Igreja cristã.
É interessante que Lutero, em relação ao batismo, tenha travado suas mais acaloradas discussões com outros reformadores e não com a doutrina da Igreja romana! No seu tratado Do Cativeiro Babilônico da Igreja, ele nos diz que o batismo é o que menos sofreu mudanças pelos papistas. Um dos argumentos de Lutero para explicar o porquê do batismo permanecer intocado pelos abusos da Igreja romana era de que ele foi dado aos pequeninos, ou seja, às crianças. Se tivesse sido reservado aos adultos, com certeza teriam acabado com ele, inventando restrições, preparações, toda a sorte de obras humanas, dando espaço às superstições e à avareza. Lutero entende o batismo como presente de salvação. Deus presenteia ao ser humano a sua salvação, que é o seu próprio Filho Jesus Cristo. Aliás, “[…] é o próprio Cristo que se encontra no batismo e está no batismo […] É Ele próprio que realiza o batismo […] Ele fala no batismo pela boca do pastor”. Para tornar claro este presente de Deus nos Batismo e Santa Ceia, Lutero usa a imagem do testamento. Mesmo explicando-o em relação ao sacramento do altar, é instrutivo também em relação ao batismo. A pessoa que vai morrer entrega um testamento, e a partir da morte desta, que seria a morte de Cristo, este testamento passa a valer. A pessoa que recebe as promessas do testamento, mesmo sendo indigna, tem direito ao que a ela é presenteado. O essencial não está na dignidade da pessoa, ou seja, nas coisas que ela fez ou deixou de fazer, mas sim no presente que recebe de fora. Isso deve ficar claro até mesmo contra a própria consciência da pessoa, que por muito “piedosa”, decide não aceitar o presente, pois sabe que é indigna. Contra a consciência deves agir, diz Lutero, pois o essencial é acreditar na promessa de Deus que, mesmo a partir da tua indignidade, te presenteou um presente tão caro . A linguagem de um testamento não é a mesma de um contrato. O último está baseado na construção “se fizeres isso… então”, enquanto o testamento se baseia na idéia de que “porque eu quis, assim, portanto, seja feito”. O peso aqui está na obra de Deus e não na dignidade ou mérito do ser humano, que o torna apto a receber. Contra a própria consciência, que às vezes quer ser muito piedosa, Lutero dá um ótimo exemplo:
Que tens com isso? Recebo o que recebo não por mérito meu nem por direito próprio algum. Sei que sou indigno e que recebo coisas maiores que mereço. […] Mas peço o que peço por direito de testamento e de bondade alheia. Se ele (o testador) não considerou indigno legar tanto a um homem tão indigno, por que haveria eu de recusar-me a aceitar por causa de minha indignidade?
É nesta promessa de Cristo em seu testamento que a fé se agarra, contra tudo e todos, até contra a própria consciência! Uma vez promulgada esta promessa, ela é válida até a morte. O batismo vale para sempre. É a ele que devemos voltar sempre. Para Lutero, o pior pecado é desconfiar desta promessa, pois essa desconfiança chama de mentirosa a promessa divina outorgada no batismo. Ora, “essa promessa não pode mentir”, pois vem de Deus. Esta questão é muito importante para Lutero. Nas suas discussões com Karlstadt, que recusava o batismo de crianças (sendo adepto do rebatismo) e entendia o sacramento do altar somente como sinal atestador para os “crentes”, colocando a ênfase na questão da fé pessoal/subjetiva, que torna alguém apto para o recebimento do Espírito Santo, Lutero via a outra face da teologia das obras da Igreja romana. Se, por um lado, a Igreja de Roma colocava o acento na ética, os radicais colocavam o acento na mudança interior e na eclesiologia, pois o Batismo e Santa Ceia são sinais de que os que os recebem são os eleitos. Para Lutero, isso significava que o peso da balança pendia para as obras do ser humano e não para o amor de Deus e sua graça outorgada no Batismo e Santa Ceia. Uma mudança interior e uma afirmação do credo, o “eu creio”, seriam os pressupostos para o Batismo e Santa Ceia. Somente os que são aptos a provarem tal desenvoltura podem ser os destinatários do Batismo e Santa Ceia. Ora, para Lutero esta é uma perversão da Palavra de Deus, que nos atinge sempre de fora, extra nos. No batismo, mesmo que a fé seja o argumento mais importante, pois sem esta não acontece o sacramento, Deus tem o poder de infundir a fé na criança. Primeiramente, Lutero fala da fé dos pais e padrinhos com toda a comunidade que respondem para a criança. Mais tarde, seu argumento é de que as crianças têm fé própria, outorgada pelo próprio Deus/Cristo. O problema destes movimentos radicais é que, para salvar o discipulado e a ação dos cristãos (que provêm da justiça de Deus a nós imputada), eles negam as promessas de Deus que estão presentes no Batismo e Santa Ceia de forma externa, colocando prescrições humanas, novas leis como pressupostos para se receber o Batismo e Santa Ceia, como batismo do espírito, fé subjetiva, êxtase interior sem mediação da Escritura. Eles invertem a ordem: somos piedosos e por isso recebemos o presente! A resposta de Lutero é que, se fôssemos agir assim, jamais teríamos certeza alguma para realizar qualquer sacramento, pois como podemos olhar no coração das pessoas e saber que realmente são dignas? Que presunção descabida é esta?
Para Lutero, é importante enfatizar que o Batismo e Santa Ceia são obra de Deus. É Deus que vem e presenteia o ser humano com seu testamento divino, tornando-o digno, apesar de sua indignidade, das promessas de Deus. Não há meio humano de tornar-se digno, mas somente vestindo-se de Cristo, agarrando-se a ele, como resposta à sua ação salvífica a nós. A essência da questão não está no poder da pessoa em fazer a confissão, em poder dizer “eu creio”, mas sim no poder de Deus, que confere esta possibilidade como resposta. Parafraseando o salmista: quem se salvaria, Senhor, se tu contasses os pecados? (Sl 130.3). Quem salva é Deus, sem pressupostos! Nas relações humanas, o poder humano pode contar. Perante Deus, somente a graça de Cristo!
A intuição de Lutero de que o batismo “é a roupa diária do cristão” nos leva a entender melhor sua posição em favor do batismo de infantes. A fé sempre será resposta à ação de Deus, pois a fé não faz o sacramento, mas o recebe. Assim, o retornar ao batismo como fonte principal da fé cristã deve estender-se por toda a vida. A volta se dá depois do ato, pois mesmo que recebamos o emblema do Espírito Santo no batismo, seja como criança ou adulto, isso não quer dizer a mágica de viver sem pecado, sem as tribulações e tentações que fazem parte da vida humana, demasiada humana! Continuamos salvos e pecadores! O batismo de adultos não garante a firmeza da fé, nem o dos pequeninos. Por isso, Lutero pode enfatizar que o batismo é obra de Deus, ao qual temos de voltar e nos agarrar, pois é ali que podemos nos “deitar” sobre Cristo, o mediador, que nos apresenta a Deus segundo a Sua realidade apecaminosa.
A questão da consciência, do compreender e do saber humanos como pressupostos para o batismo é totalmente recusada por Lutero. É o batismo, como materialidade do testamento que a mim foi dado, outorgando-me as promessas de Cristo, pressuposto da minha volta incessante a ele na fé. Não é a minha fé que realiza o batismo. Na fé acontece a volta à nave, ao barco que sempre estará à minha espera, se eu por acaso me jogar ao mar pelo pecado. Este estará lá, sempre firme para que eu me agarre a ele. Este voltar, este viver segundo o batismo é o despertar e o fomentar da fé. Este regresso não é a volta ao meu “creio”, à minha confissão de fé, mas a volta às promessas do batismo que me foram doadas no testamento de Cristo. A fé não é pressuposto do batismo, mas ela o recebe na volta a ele, na aceitação, na fé nas promessas. Deus age, segue-se a fé, e à fé a caridade. Por isso, esta questão de rebatismo ou batismo do Espírito Santo na conversão é totalmente repudiada por Lutero, apesar de o Pietismo e, depois dele, alguns setores do luteranismo terem seguido a linha de Karlstadt, colocando sempre novos pressupostos que atestassem a dignidade do ser humano perante Deus. O caminho dado pelo batismo é o caminho da salvação: o morrer e o ressuscitar com Cristo que ali têm lugar e o constante “agarrarse” a ele durante toda a vida não podem ser superados por nada, pois ali tudo já está dado. Por isso, Lutero afirma: “Tudo que vivemos deve ser batismo e completar o sinal”, ou seja, morrer para os pecados e ressurgir para a vida com Cristo. O Espírito Santo nos é dado gratuitamente no batismo, tornando-nos santuário de Deus, onde Ele vem habitar (1 Co 3.16).
As reflexões que criticam o batismo de infantes partindo do pressuposto de um “indiferentismo e descomprometimento religioso e pluralismo secularizado” que permeiam a sociedade atual devem ser muito bem analisadas e discutidas. Se, por um lado, concordamos com a crítica do descomprometimento em relação à educação e atuação cristãs, por outro discordamos da imputação da culpa à prática do batismo de infantes, como se ela fosse a causa da anomalia da secularização. O nosso fracasso enquanto pais, padrinhos, Igreja em se tratando do catecumenato, que deveria ser permanente, ou seja, uma vida constantemente direcionada ao batismo, não podem desprezar a questão fundamental de que Deus concede sua graça através deste sacramento e que ele é válido, sem o pressuposto da fé como poder humano, mesmo diante do nosso fracasso em ensinar e viver uma vida enraizada nas suas promessas. Neste sentido, o argumento da bagatelização do batismo deve ser ressaltado, pois confere com a nossa realidade hoje. Entretanto, a saída que é proposta, ou seja, o batismo de adultos, não permite um remédio melhor para esta crise! Qual é a diferença entre um cristão que foi batizado adulto e que duvida da promessa no testamento de Cristo e de um outro que foi batizado quando criança e que agora também duvida? Nenhuma. Por que há de ter vantagem o que foi batizado adulto, se os dois devem voltar ao batismo e acreditar na graça de Deus que outorgou todas as promessas a partir de Cristo a ambos? Qual dos dois teria vantagem, quando ambos devem se deixar levar por Cristo, vestir-se dEle e nEle, longe das certezas próprias?
O batismo daquele que pode afirmar a sua fé na confissão não é melhor, mais digno e justo do que aquele que é realizado às crianças, pois ninguém vê o coração daquele que está fazendo a confissão. Segundo Lutero, se o argumento dos que negam o batismo aos infantes for de que estes não têm fé e que não podem expressá-la, ele é “como manteiga no sol”, pois ninguém pode provar que a criança não tenha fé, assim também como não se pode provar com certeza a fé adulta! “Nós não nos deixamos batizar pelo fundamento da certeza da fé, mas sim porque Deus ordenou e o quis”. Não posso basear o batismo na fé do que quer ser batizado, pois então o fundamento do batismo seria ele mesmo e não a Palavra de Deus. Portanto, o batismo é fundamentado na ordem de Deus e não na certeza da fé na minha confissão. Vejamos a seguinte citação:
Se agora então um homem idoso devesse ser batizado e dissesse: Senhor, eu quero ser batizado. Então tu perguntas: Crês tu também ?, como Filipe perguntou ao eunuco em Atos 8.37 e como nós diariamente perguntamos aos batizandos. Então ele não virá e me dirá: Sim, eu quero mover montanhas através da minha fé. Mas: Sim, Senhor, eu creio, mas sobre esta fé não edifico, pois ela me seria fraca e incerta. Eu quero ser batizado segundo o mandamento de Deus, o qual quer isso de mim. Sobre este mandamento eu me atrevo (ser batizado), com o tempo que a minha fé se torne o que ela pode ser. […] Se eu fosse batizado segundo a minha fé e amanhã me sentisse como não batizado, se a fé me escapasse ou sofresse tribulações, como se ontem (quando fui batizado) eu não tivesse verdadeiramente crido! A mim não. Melhor que as tribulações enfrentem a Deus e o seu mandamento por causa do meu batismo; isto é mais seguro para mim.
As seguranças humanas, buscadas seja no entendimento ou na razão, seja em experiências místicas ou de êxtase, jamais tornarão o ser humano digno das promessas divinas. Essa é a grande lição da Reforma! Perante Deus, não há razão humana ou consciência que sejam válidas como pressuposto de algo, pois o testamento no sacramento de Cristo não é beneficium acceptum, sed datum, ou seja, não é benefício aceito, mas dado! A fé será sempre resposta à obra de Deus, mesmo que o entendimento seja velado (Hb 11.7). Acreditando no testamento, começamos a entendê-lo depois que ele nos foi dado, e não antes. Não há pré-requisito, pois a obra de Deus é primeira (Hb 11.1). Neste sentido, a fé sempre pode responder, voltar a Deus em Cristo que nos amou primeiro (1 Jo 4.19). Não é sobre a minha fé que tenho de edificar, mas sobre a palavra da promessa de Deus.
Assim fazemos com o batismo de crianças: trazemos a criança até aqui entendendo e esperando que ela creia, e oramos para que Deus conceda fé a ela; entretanto não batizamos por causa disto, mas somente porque Deus assim o ordenou.
E é por isso que Lutero, desde o começo até o final de sua vida, afirmou o batismo de infantes. O autor e consumador da fé é Cristo (Hb 12.2). A fé nos toma, e não somos nós que a tomamos: nós é que somos por ela tomados!
O argumento de uma violência cometida pelos pais, padrinhos e Igreja às crianças que ainda não conseguem se defender, ou seja, que ainda não conseguem articular o “eu quero, eu creio”, nega, a meu ver, toda possibilidade de missão da Igreja, em se tratando de educação, e entende o papel dos pais e sua influência na vida das crianças de modo muito ingênuo. Se não, vejamos: é lógico que as crianças nascidas de lares cristãos serão influenciadas pelos pais, pelos padrinhos, pela vida da Igreja, pela sociedade à qual pertencem. É lógico também que os pais têm grande influência sobre os filhos e que as crianças, durante boa parte de sua vida, estarão sob esta influência, ou seja, dependerão de seus pais, de suas decisões e ensinamentos, tanto para o bem quanto para o mal. Agora, dizer que isso é uma violência, pois os pequeninos ainda não podem se defender, é acabar com qualquer possibilidade de educar filhos e filhas!
A crise do Batismo e Santa Ceia, também da confirmação, tem suas raízes, hoje em dia, justamente nesta questão: o nosso fracasso perante nossos filhos e filhas em torno da educação cristã! Se sou cristão, é claro que devo ensinar os meus filhos segundo a minha fé. Discutimos aqui justamente o nosso fracasso em ensinar a fé! Aqui está a lacuna! Entretanto, nos colocam o argumento de que: não se dá liberdade às crianças para que elas tenham escolha própria? Ora, esse argumento de violência é descabido, a meu ver, pois não há e nunca houve qualquer tipo de educação que seja neutra. Deveríamos dar graças a Deus que as crianças são batizadas e que através disto podem fazer parte e ser educadas em um lar e uma comunidade cristã, ouvir a Palavra e participar da Santa Ceia (embora, quanto a este ponto, as leis humanas falem mais alto). A postergação do batismo não traz privilégios e não é aconselhada, tal como mostra o exemplo de Agostinho citado por Lutero. O que está errado é a nossa prática de viver o batismo. Por que batizamos crianças? Os Batismo e Santa Ceia são testamento, promessas contidas no testamento e sinal visível, evangelho visível, “[…] é Deus que te fala por um ser humano e te submerge na água”, palavra unida ao sinal, obra divina, pois “receber a palavra, os sinais e a graça de Deus não é dar de si ou fazer algo de bom, mas somente tomar para si”. Para os pais que crêem firmemente nesta promessa, nada mais justo que a condução de seus filhos à pia batismal, para que desde pequenos participem do corpo de Cristo, para serem cristãos integralmente. O presente de Deus é para todos. Aferrar-se, agarrar-se a ele, vestir-se dele, esta é a resposta da fé dos pais, padrinhos e comunhão dos santos, que conduz as crianças ao batismo. Este voltar ao batismo pela vida inteira é parte importante da educação de pais, padrinhos e Igreja. A fé da criança é obra de Deus. Não será um “creio” mais tarde, ou seja, o pensamento de que ela mesma terá de decidir, que dará mais poder ou integridade ao batismo, pois este não acontece pelo eu creio, mas sim pela ação de Deus que vem até nós. A esta ação se voltará e se dirá “eu creio”. A questão está em aceitar ou não este presente agora, na indignidade que nunca será totalmente vencida, somente no Reino de Deus, pois, enquanto o Reino não se der por completo, as tribulações e o pecado agirão em nós. A única certeza que temos é que a promessa de Deus não mente.
O testamento nos foi dado gratuitamente. Resta-nos voltar a ele sempre. Portanto, já que a nossa fé é falível, já que não somos presunçosos e não colocamos a nossa fortaleza nas nossas próprias ações, quem garante que, se esperarmos até que possamos dizer “eu creio”, seremos privados das tentações do mundo e do pecado que habita em nós, que nos assaltam e nos desviam do amor de Cristo? Já que não somos supercristãos, pois não colocamos nossa certeza na ascese intelectual ou espiritual, uma vez que a fé não é objeto que apreendemos e o tornamos nosso, objeto pertencente ao sujeito, pois ela permanece sempre obra da misericórdia de Deus em nós, por causa destes tantos “jás” é que Cristo instituiu a Santa Ceia (o que se quer ressaltar aqui é esta relação intrínseca entre o batismo e a Santa Ceia: em ambos Deus vem até nós por graça, não contando nosso saber, fazer ou a fortaleza de nossa fé). Ali viemos com nossa fé fraca e recebemos fortalecimento através de Cristo que se oferece a nós como banquete, aperitivo do Reino que ainda está por vir. Esta festa, este banquete é dado a todos que fazem parte da comunhão dos santos, que são batizados. Entretanto, confiando demasiadamente em nós mesmos, erigimos novamente leis, pré-requisitos, que, fazendo do testamento um contrato, ou seja, “se tu fizeres isso, então receberás aquilo,” nos afastam da graça de Deus.
Agindo assim estamos cometendo o maior pecado, pois não confiando nas palavras de Cristo contidas na sua promessa ou seja, de que ele concede graça ao pecador, perdão de pecados e vida eterna no batismo, e por isso o passaporte para a comunhão de mesa com a comunidade que é corpo de Cristo chamamos Deus de mentiroso. Por não confiar na promessa de Deus contida no Batismo e Santa Ceia, erigimos novas leis, obras humanas56, para garantir à nossa consciência que, cumprindo estas, seremos merecedores. Entretanto, esquecemos que o testamento não é um contrato e que a graça nos é dada mesmo a partir de nossa indignidade. Nunca serás merecedor, mesmo assim recebes o presente. Tens de acreditar nessa gratuidade e voltar sempre a ela, pois as palavras de Cristo que te prometem os dons de Deus não mentirão jamais, mas os teus pensamentos te enganarão. Que o presente de Deus não depende de nada que o ser humano possua ou faça, essa é a grande descoberta de Lutero, a libertação da própria consciência que o oprimia.
O Batismo e Santa Ceia são presentes, pois é a Palavra de Deus que os realiza. É justamente nela que está a essência da questão, e não na consciência humana que quer de alguma forma justificar-se. Eu gosto muito de um texto de Ebeling que resume de maneira formidável esta questão da consciência do ser humano segundo Lutero, ou seja, qual a opção entre a palavra que “o alcança e o atinge em seu íntimo”:
A palavra que só o compromete consigo mesmo, que o faz depender só de si mesmo, que o reclama sem restrições como agente e, por isso, até como quem se faz a si mesmo, apresentando-lhe a conta de tudo quanto não fez, onde falhou, o que ficou devendo; ou então a palavra que o liberta desta prisão em si mesmo, desse estar entregue a si mesmo, a palavra que lhe abre uma esperança que não tem fundamento no seu próprio ser, que lhe traz ânimo que não é derivado dele mesmo, que não o interpela como agente que devesse justificar-se a partir de suas obras, mas como quem não se deve a si mesmo, como quem se tornou um presente para si mesmo e que doravante pode entender-se como alguém que vive do presente, da graça, do perdão.
A justiça da fé não é e nunca será possessão; pelo contrário, será sempre obra externa de Deus. A origem da fé não está no nosso alcançar, mas no descer de Deus a nós, no seu atingir o nosso ser. Se fôssemos comparar e distinguir entre lei e evangelho, diríamos que nos Batismo e Santa Ceia reina o evangelho puro aqui nada é pedido ao ser humano aqui Deus está agindo em graça. Analisando o Magnificat, Lutero diz: “Assim diz a voz da lei: Dá o que tu deves; a do evangelho, porém: Teus pecados estão perdoados”. Aqui a voz da salvação vem de graça. A graça é como uma pomada “com a qual os pecados são perdoados e as feridas de nossa natureza são curadas”. Aqui não fala mais alto a sabedoria ou o conhecimento, o que se faz ou o que se pode, mas sim a Palavra do evangelho, da graça. No meu entender, a negação do sacramento do altar aos pequeninos contribuiu e muito para a questão da bagatelização do batismo e da dificuldade frente ao catecumenato permanente. Aqui entra o relacionamento intrínseco entre batismo e Santa Ceia, o qual já mencionamos. Negar a Santa Ceia às crianças é uma anomalia para quem crê e pratica o batismo como graça divina. Se a questão essencial fosse o entendimento, jamais poderíamos realizar qualquer sacramento, pois nos perguntaríamos como podem nos ser dadas coisas tão grandes, que não entendemos. No Batismo e Santa Ceia nos é presenteado todo o Cristo, diz Lutero, perdão dos pecados, graça, superação da morte e do diabo. É tanta coisa que a natureza tola deveria mesmo duvidar, de tanto que é! Se a questão essencial fosse a certeza, então jamais seríamos dignos de qualquer coisa, pois as tribulações fazem parte do nosso cotidiano humano, demasiado humano.
Como ter certeza sobre a fé dos outros, se não podemos ver através do coração das pessoas? Portanto, não realizaríamos assim qualquer sacramento. Se fôssemos fundamentar o batismo nas nossas certezas, teríamos “um eterno batizar, que nunca mais teria fim (ou) nunca o realizaríamos”. Da mesma forma, nunca mais participaríamos da Santa Ceia. Se a questão essencial fosse uma fé que pode ser articulada, iríamos colocar todas as nossas certezas nas forças humanas, no poder do “eu creio”, da confissão. Entretanto, afirmamos teologicamente justamente o contrário! Tudo o que somos e o que temos não baseamos em nós mesmos, mas em Deus. “Pois, lá onde a força humana vai embora, lá entra a força de Deus em ação. E lá onde a força humana entra, lá a de Deus vai embora”. Onde há soberba, sabedoria humana que se ufana, lá Deus já deixou o barco à deriva ! “A fé não tolera estatutos humanos na consciência”. A graça de Deus vale para o batismo e, da mesma forma, para a Santa Ceia. Enquanto o primeiro acontece somente uma vez, a Santa Ceia é sempre a mão estendida de Cristo à nossa fé falível. Nós nos encontramos sempre qual Pedro: andando sobre as águas, duvidamos e começamos a afundar, necessitando a mão de Cristo que nos salva, que nos tira das águas que querem nos engolir (Mt 14.31). Não é no “eu creio”, na minha consciência ou no entendimento que tenho que me apegar, mas no testamento e nas promessas de Cristo. Por isso, a prática da negação da Santa Ceia às crianças é uma anomalia, pois chama de mentirosas as promessas do testamento de Cristo outorgadas aos batizados. A educação e o entender (que sempre será relativo) do Batismo e Santa Ceia devem se dar no processo de vivência da fé, pressupondo a participação das crianças na Santa Ceia, à qual são convidadas. O processo deveria ser simultâneo: participando e aprendendo, aprendendo e participando; pois há melhor maneira de aprender comunhão do que experimentando tal comunhão com Deus e com o próximo? Entretanto, para salvar as nossas consciências cheias de dúvidas, colocamos pressupostos como entendimento, fé que pode ser articulada, que não auxiliam em nada a educação na doutrina cristã. Até porque há uma incoerência bem grande nisto tudo, pois falamos de graça enquanto colocamos obras do entendimento como pré-requisitos à graça! De um sacramento da fé tornamo-lo um sacramento do merecimento.
Além disso, temos em nossas comunidades, por causa da não confiança na promessa, cristãos pela metade, parciais, que devem esperar por uma data prevista para poderem se tornar cristãos completos. Novamente somos nós que colocamos obstáculos à obra de Deus, que de forma alguma é parcial, mas sim total. Querendo nos precaver de cair em erros, pecamos por falta de confiança em Deus. Querendo prestar um grande serviço, acabamos por cometer o pior dos pecados: duvidamos de sua Palavra, pois o negar a Santa Ceia às crianças é grave, porque se duvida da palavra de Deus que as torna suas filhas no batismo. Portanto, quem é batizado tem o direito de participar na festa do Reino, cujo anfitrião é Cristo.
Quando as crianças quiseram se aproximar do mestre, foram-lhes colocados obstáculos. Assim como os discípulos, nós também devemos ser repreendidos pelo Cristo indignado: “Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque dos tais é o Reino de Deus” (Mc 10.13-16; Mc 9.33-37). São somente duas as passagens de Jesus com as crianças; entretanto, sua importância é enorme! Jesus as coloca como exemplo, como o que devemos nos tornar para herdar o Reino de Deus. Como enfatiza Lutero, se as crianças não crêssem, Deus teria nos dado um mau exemplo do Reino. Como sempre, a lógica de Jesus subverte a nossa.
Nossa sabedoria torna-se loucura perante Deus! Não embaraçar as crianças, não negar o seu acesso à comunhão dos cristãos não é algo superficial, que pode ser simplesmente colocado de lado, sem discussão e aprofundamento, como parece ser na nossa prática comunitária. O argumento da espera até a confirmação não é sustentável evangelicamente. As crianças, assim como nós, necessitam do evangelho visível, da Palavra que se encarna, que no sacramento do Altar é Palavra boa de comer, é doce como o mel, traz alegria e fé: “Quando recebi as tuas palavras, eu as devorava. A tua palavra era festa e alegria para o meu coração.” (Jr 15.16). “E Deus disse: `Criatura humana, que seu estômago e sua barriga se saciem com este rolo escrito que estou lhe dando.’ Eu comi e pareceu-me doce como o mel para o meu paladar.” (Ez 3.3). “São mais doces do que o mel e o destilar dos favos.” (Sl 19.11). A Palavra viva, que é o sacramento, tem sabor e perfume. (2 Co 2.14-16). “Tomai, isto é o meu corpo; isto é o meu sangue, o sangue da aliança derramado em favor de muitos.” (Mc 14.22,24). Por nossa fraqueza, para o fortalecimento de nossa pouca fé, para o fomento de uma comunhão mais profunda e duradoura, Cristo nos deu a materialidade do seu corpo e sangue. O nosso relacionamento com Deus passa pela materialidade da criação divina. A Palavra divina que provoca a fé nos atinge de fora e nos presenteia um Deus encarnado, presente não só em Espírito mas na sua materialidade/carnalidade: a Palavra é doce como mel no meu paladar. Deus sabe que nós precisamos disso, que necessitamos recebê-lo com nossos sentidos, de maneira concreta e palpável, pois assim fica mais fácil ter fé, pois somos como o pai do menino possesso: “Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé!” (Mc 9.24). E é por isso, pela nossa fé pequena, que Ele se nos doa nos Batismo e Santa Ceia. Ouvimos sua palavra, vemos a água, a sentimos, sentimos o calor das mãos que nos abençoam, sentimos o calor das mãos unidas quando nos dirigimos para a ceia, comemos, sentimos o gosto, tomamos, nos abraçamos e regressamos fortalecidos: uma festa para os nossos sentidos preparada por Deus. Quem disse que as crianças não necessitam de toda esta experiência também? Experiência esta que é ali colocada por Deus justamente para fomentar a nossa fé. Que pais, que padrinhos e que Igreja somos, quando negamos toda esta materialidade de Deus aos pequeninos?
Penso que, se as crianças participassem de tudo isso, seria muito mais fácil o catecumenato permanente, que continua sendo nossa responsabilidade a vida toda, não somente para as crianças, mas também para os adultos. Deveria ser possível, a cada Santa Ceia, voltar ao batismo, ao início onde Deus nos promete e nos dá seu testamento, que fica cada vez claro no comungar o corpo e sangue de Cristo. As crianças não são cristãos parciais, pois o agir de Deus nelas não é parcial. A comunhão plena falta às crianças, e isso não pode ser explicado a elas sem a experiência do fato. Elas necessitam da Santa Ceia para o fortalecimento de sua fé, para serem fortificadas na esperança e para serem aquecidas no amor, tanto quanto os adultos. Pois, através desta comida, os cristãos têm certeza de que Cristo se presenteou a eles. A Palavra tornou-se e torna-se carne! Através da Palavra do evangelho concreta que é o sacramento do altar, fica claro para mim que sou filho e filha de Deus, mesmo com minha indignidade e a minha fé pequena.
O nosso problema é que sempre queremos criar algo nosso, e assim perdemos o tesouro que está exemplificado de forma tão simples no sacramento. É importante para as crianças que elas não sejam colocadas de lado, pois, sendo batizadas, elas têm direito ao lugar à mesa. Elas são tão dignas quanto nós adultos, pois todos somos pecadores que necessitam da mão estendida de Deus. Não vou ao sacramento pela minha vontade, mas pela vontade de Cristo. Portanto, sigo a ordem dEle. “Jesus não diz: se vocês crerem e forem dignos, então terão meu corpo e sangue, mas, tomem, comam e bebam, isto é o meu corpo e sangue”.
É essa simplicidade evangélica que nos falta. Superar esta anomalia é nossa responsabilidade frente ao evangelho, pois, como vimos, ela não pode ser tratada como uma questão periférica, mas deve ser uma questão fundamental, em se tratando da Igreja de Cristo. As mudanças devem ser referendadas pelo diálogo e pela compreensão, de modo pastoral, partindo do contexto e da comunidade, mas devem ser estabelecidas. O evangelho, que é a Boa Nova dirigida a todas as gentes, deve imperar sobre as nossas limitações e preconceitos. O evangelho deve imperar sobre a lei. Assim, mesmo que a negação da Santa Ceia às crianças estivesse descrita no decálogo, depois de Cristo teríamos de deixá-las participarem justamente pelo compromisso do amor. Não pela lei, mas pela graça!
Texto extraido do autor: Leandro Otto Hofstätter
Titulo original: As crianças e o sacramento da eucaristia