O BATISMO NO TERCEIRO SÉCULO

O BATISMO NO TERCEIRO SÉCULO

No terceiro século, as especulações sobre o batismo giram em torno de sua função, até então universalmente aceita como meio de concessão do Espírito. O batismo de crianças era agora comum, e esse fato, junto com a rápida expansão do número de membros da igreja, fez com que os bispos delegassem cada vez mais a ministração dos sacramentos aos presbíteros. Como vimos, a existência de dissidentes levantou o problema do novo batismo deles ao se unirem à igreja. Conseqüentemente, crescia a importância dos ritos subsidiários associados ao batismo — crisma, ou unção com o sinal da cruz, e imposição de mãos. Observamos uma tendência de limitar o efeito do batismo em si à remissão de pecados e à regeneração e de vincular a dádiva do Espírito a esses outros ritos.
Examinemos em primeiro lugar, o Oriente, onde idéias conservadoras persistiram mais tempo. Clemente de Alexandria declara[1] que o batismo oferece regeneração, iluminação, filiação divina, imortalidade, remissão de pecados; a filiação, explica[2], é o resultado da regeneração operada pelo Espírito. O batismo imprime um selo, ou cunho, que na verdade é o Espírito, a imagem de Deus[3]; o Espírito que habita no íntimo é um “sinal reluzente” (charaktêr) de que o cristão é membro de Cristo[4].
Como em lugar algum Clemente sugere um rito litúrgico de unção ou de imposição de mãos, é razoável inferir que ele entendia que o batismo em si mediava o Espírito. Orígenes coloca uma ênfase bem maior no significado interno e na eficácia espiritual do batismo, demonstrando uma compreensão mais profunda da doutrina bíblica. Ele insiste[5], por exemplo, na penitência, na fé sincera e na humildade como pré-requisitos do batismo e também na maneira gradual com que ele transforma a alma. Ele acredita[6] que no batismo o cristão é unido a Cristo em Sua morte e ressurreição. É o único meio de obter a remissão de pecados[7]; o batismo liberta-nos do poder do diabo e nos torna membros da igreja como corpo de Cristo[8]. Até crianças pequenas, ele pressupõe [9], estando contaminadas com o pecado, devem ser batizadas. Seu ensino[10] usual é que o Espírito é recebido no batismo, quando o convertido é “batizado em Cristo, na água e no Espírito Santo”. O Espírito desce sobre o cristão no momento de seu batismo, da mesma maneira como desceu sobre Cristo quando este foi batizado; assim, o cristão torna-se “pneumático”[11]. Está claro, porém, que ele considera enigmáticos textos como Atos 8.17 e, às vezes, é levado a fazer distinção [12] entre “a graça e a regeneração do batismo” e o dom do Espírito mediado pelas mãos dos apóstolos. Mas seria um erro considerar que Orígenes, mesmo abordando esses detalhes, divide a iniciação cristã em dois ritos distintos. Pelo contrário, ele ressalta sua unidade, colocando toda ênfase nos efeitos internos, tratando aspectos como imposição de mãos e crisma como elementos subordinados de um único rito.
Quando retornamos para o Ocidente, descobrimos uma disposição cada vez maior de concentrar a dádiva do Espírito nos ritos posteriores. É verdade que Hipólito geralmente preserva a teologia tradicional, associando[13] ao batismo tanto a remissão dos pecados quanto a recepção do Espírito. No entanto, ele fornece dados valiosos da importância que outras cerimônias estavam agora assumindo, como, por exemplo, a imposição das mãos do bispo acompanhada de oração e unção com óleo, e às vezes vincula[14] a recepção do Espírito a esta última. Tertuliano leva-nos um passo adiante. Ele sustenta que o batismo [15] é necessário à salvação; seguindo o exemplo de Cristo, nascemos na água e só podemos ser salvos permanecendo nela. Ele é ministrado a crianças, embora pessoalmente Tertuliano prefira [16] que seja adiado até que cheguem à idade de discernimento. Ele não pode ser repetido, e a única exceção é o batismo de hereges, que nunca receberam o verdadeiro batismo[17] de maneira alguma. Seus efeitos incluem a remissão de pecados, a libertação da morte, o renascimento e o dom do Espírito [18]. A idéia de que o Espírito é recebido no batismo transparece com vigor nos capítulos iniciais de seu tratado sobre o sacramento, porém mais tarde ele muda de idéia, comentando[19]: “Não que recebamos o Espírito Santo na água, mas, depois de restaurados na água, somos preparados sob a direção de um anjo para o Espírito Santo”. Ainda depois, ele fala [20] das mãos do bispo, sendo impostas para abençoar, “convocando e invocando o Espírito Santo”, e encontra apoio para sua teoria na tipologia implícita de Gênesis 48.14 (onde Jacó coloca suas mãos sobre as cabeças de Efraim e Manasses para abençoá-los) e no episódio dos discípulos de Éfeso, em Atos 19. Um ensino semelhante encontra-se em outros trechos [21] de seus escritos, e sua teologia parece ter permanecido confusa.
Na época de Cipriano, o desenvolvimento havia chegado à sua conclusão lógica. O ponto de vista conservador ainda tinha importantes defensores em Roma, como o teólogo Novaciano. Ele ensinava [22] que o Espírito é a força ativa que experimentamos no batismo, regenerando-nos e habitando em nós com Sua presença pessoal, dando-nos um prenuncio da vida eterna e preparando-nos para a imortalidade; e Novaciano ignorava completamente a confirmação. Entretanto, o ensino romano mais usual estava agora à frente desse, inclinado a identificar a dádiva do Espírito com os ritos que se seguiam ao batismo na água. Observamos que o papa Cornélio (251-253) criticou [23] Novaciano, que fora batizado por afusão no seu suposto leito de morte, por ele não ter suplementado u batismo com o “selo” das mãos de um bispo: “Se deixou de obter esse elemento, como pode ter recebido o Espírito Santo?” Pode-se inferir que a mesma teologia está por trás do papa Estêvão (254-257), que, em oposição a Cipriano, queria reconhecer a validade do batismo de dissidentes; com o enfraquecimento do significado do batismo em si, que em parte resultava de sua delegação aos presbíteros, acentuou-se a importância da imposição de mãos ou da confirmação com crisma, que eram reservados ao bispo. O autor desconhecido do folheto anticipriânico De rebaptismate, escrito por volta de 256 no norte da África [24], completa a demarcação entre o batismo (baptisma aquae) e a imposição de mãos (baptisma Spiritus ou spiritale), designando-os respectivamente como “o menor” e “o maior”. Recorrendo a Atos 8.17; 9.17; 19.6, ele descreve o batismo na água como “um mistério mutilado e incompleto da fé”, e insinua [25] que a confirmação (se é que podemos chamá-la assim) é o que outorga o Espírito e, aparentemente, também a remissão de pecados, sendo que a salvação está vinculada a essa confirmação. A depreciação do batismo em si não podia continuar, e podemos entender por que aquele autor não achava necessário rebatizar os dissidentes, desde que aceitassem a imposição episcopal de mãos.
A própria posição de Cipriano tem suas ambigüidades. Ele sustenta [26] que, pela lavagem na água, o convertido renasce em novidade de vida, sendo esse o resultado da descida do Espírito. Ele afirma [27] explicitamente que “o Espírito é recebido no batismo, e, depois de serem batizados e obterem o Espírito Santo, os convertidos aproximam-se para beber o cálice do Senhor”. Até as crianças recebem o Espírito no batismo [28], de acordo com sua capacidade; opondo-se a Cornélio, ele argumenta [29] com veemência que aqueles que foram apenas clinicamente batizados na enfermidade (presumindo-se, portanto, que não receberam a imposição de mãos e a unção do bispo) receberam o Espírito Santo da mesma forma que seus companheiros que passaram pelo rito público completo. Tudo isso é doutrina ultrapassada, estando ligada à sua insistência no novo batismo de hereges e dissidentes. Às vezes, contudo, sem dúvida influenciado pelo costume vigente de fazer com que o bispo impusesse as mãos ao recém-batizado, e também por sua leitura dos textos notórios de Atos, Cipriano hesita e atribui [30] o dom do Espírito à imposição de mãos e ao ato de fazer o sinal da cruz. Ele chega a interpretar [31] João 3.5, que se refere ao novo nascimento pela água e pelo Espírito, como se implicasse dois sacramentos. Entretanto, em comparação com seus contemporâneos, Cipriano deve ser visto como um conservador que resistiu à tendência popular de reconhecer dois ritos inteiramente distintos, esforçando-se, pelo contrário, para mantê-los juntos como dois aspectos diferentes da iniciação cristã.


[1] Pacd. 1.6.26.
[2] Ibidem, 1.5.21.
[3] Excerpta Theod. 86.2.
[4] Strom. 4.18.116.
[5] Hom. in Lev. 6.2; in Luc. 21; in Exod. 10.4.
[6] Hom. in lerem. 19.14.
[7] Exhort. ad marl. 30.
[8] Hom. in Exod. 5.5; in Rom. 8.5.
[9] In Rom. 5.9; hom. in Luc. 14.
[10] De princ. 2.10.7; hom. in Exod. 5.5.
[11] Hom. in Luc. 22; 27.
[12] E. g., de princ. 1.3.7.
[13] E. g., trad. apost. 22. ls (versão latina).
[14] E.g.,inDan.A6.
[15] Debapt. 1; 12-15.
[16] Ibidem, 18.
[17] Depud. 19.
[18] De bapt. 1; 18; c. Marc. 1.28.
[19] De bapt. 6.
[20] íbidem, 8; 10.
[21] li. g.,de res. carn. 8.
[22] De trin. 29.
[23] Cf. Eusébio, hist. eccl. 6.43.15.
[24] De rebapt. 11; 6 ad fin.
[25] íbidem, 5.
[26] Ad Don. 3s.
[27] Ep. 63.8.
[28] Ibidem, 64.3.
[29] Ibidem, 69.13s.
[30] Ibidem, 73.9.
[31] Ibidem, 72.1.